
As pequenas e médias cidades, sob a perspectiva de um saber eurocentrado ou ocidentalizado, são frequentemente consideradas as periferias do mundo. Isso se deve ao fato de que, nesses territórios, os fluxos de capitais estão mais distantes dos centros do comércio internacional, dos polos tecnológicos ou dos espaços reconhecidos como centros culturais. Esse mesmo saber é o que nos rotula – nós, nascidos ou moradores do interior do Brasil – como “caipiras”[1].
Ser chamada de “caipira” nunca me ofendeu, pelo contrário, sempre enxerguei nisso uma marca de pertencimento. Cresci no interior, cercada por histórias, receitas, rezas e modos de vida que não cabem nos grandes centros urbanos. Esses saberes, passados no quintal, no terreiro, nas festas da igreja e nas roças, são parte do que sou. Mas é impossível ignorar a contradição de que enquanto se romantiza o interior e se celebra a cultura local, o modelo agropecuário que avança sobre essas mesmas terras destrói os nossos saberes e o nosso ambiente.
Para dar um exemplo do desses saberes tradicionais, cito o modo de produzir queijo ou o próprio pão de queijo. Quem sai de Monte Carmelo e tenta comer um pão de queijo em qualquer padaria fora da cidade sabe do que estou falando. As épocas em que as famílias se reúnem para fazer pamonha, ou se organizam para moer cana e produzir rapadura, são expressões concretas de cuidado e de preservação das pessoas e da cultura da nossa terra.

Esses saberes estão intrinsecamente ligados à preservação ambiental e à proteção dos direitos das mulheres e a proteção dos saberes tradicionais. Afinal, não se produz mandioca para o pão de queijo sem uma terra saudável. Da mesma forma, uma mãe, avó ou esposa não consegue produzir alimento se não estiver livre da violência dentro de casa. E mesmo quando há segurança no lar, não há como preparar um pão de queijo saudável se a mandioca estiver contaminada de agrotóxicos. Até hoje, que eu saiba, não inventaram uma rama de mandioca tolerante ao glifosato, como fizeram com a espiga do milho. Ainda bem – porque, sendo mineiros, o consumo residual daquele produto nos comprometeria demais.
Por isso, afirmo que a proteção dos saberes tradicionais está diretamente ligada à defesa dos direitos das mulheres e à preservação ambiental. Nossa cultura, a sabedoria que sustenta esse modo de vida e que tem sido transmitida de geração em geração, está em risco. E a ameaça não vem apenas da erosão natural do tempo, mas de alterações legislativas que fragilizam os mecanismos de proteção a essa forma de viver. Uma dessas ameaças é o Projeto de Lei 3729/2004, que propõe mudanças profundas nas regras de licenciamento ambiental no Brasil.
O PL 3729/2004 tramita há 17 anos no Congresso Nacional. Seu objetivo inicial, conforme o próprio texto, era “disciplinar o processo de licenciamento ambiental e sua aplicação pelos órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente”. Até aí, nada alarmante. Mas, ao longo do tempo, o projeto passou por diversas modificações[2], e sua versão atual representa um verdadeiro retrocesso nos direitos ambientais e sociais.
Atualmente, o licenciamento ambiental é um procedimento fundamental pelo qual projetos como desmatamentos, construção de rodovias ou atividades mineradoras precisam passar para avaliação de seus impactos. Esses impactos não dizem respeito apenas a árvores e rios, mas abrangem a vida das pessoas, a organização das comunidades, a saúde humana e o direito à dignidade, à cultura e à liberdade de crença.
Na versão aprovada pela Câmara dos Deputados, o PL permite que quase todas as obras substituam o Estudo de Impacto Ambiental – que hoje é feito em três etapas (licença prévia, de instalação e de operação) e fiscalizado por órgãos como o Ibama – por simples documentos de autodeclaração. Ou seja, a própria empresa informa, sem fiscalização prévia, os impactos e medidas de controle de sua atividade.
Esse procedimento lembra outros modelos já criticados no país, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), introduzido pelo Código Florestal[3], que foi alvo de polêmicas por ter concedido anistia a desmatamentos realizados até 2008 e por instituir as chamadas “áreas consolidadas”[4]. A proposta declaratória que embasa o PL 3729 repete os mesmos erros, sem demonstrar eficácia. Como demonstrou uma pesquisa sobre o CAR, o procedimento declaratório não foi suficiente para acelerar o processo de registro das terras, mantendo os registros desatualizados[5].
Além disso, esse novo modelo pode abrir brechas para interpretações divergentes e erros que, em muitos casos, serão considerados fraudes. Isso penaliza ainda mais os pequenos produtores, com multas e processos administrativos prolongados, além de aumentar a insegurança jurídica e sobrecarregar o Judiciário com novas demandas.
Do ponto de vista comercial, as assessorias ambientais podem até crescer, oferecendo suporte técnico para a autodeclaração. No entanto, essa mudança não traz benefícios reais no longo prazo, especialmente diante dos compromissos que o Brasil assumiu no cenário internacional de adaptação às mudanças climáticas.
O que está em jogo aqui não é apenas um procedimento técnico. É a própria forma como nos relacionamos com o ambiente, com a coletividade e com o futuro. Precisamos repensar os paradigmas que sustentam nosso direito e nossa economia.
Para superar essa lógica, é urgente reconhecer os direitos da natureza a partir de uma perspectiva ampla e plural. Nossa saúde e nossa existência estão diretamente ligadas à manutenção de um ambiente limpo, saudável e equilibrado. As cidades do interior, com todo o esforço de suas comunidades, ainda preservam muitos saberes tradicionais – que, infelizmente, não são valorizados por quem está “do lado de fora”.
Como aponta o sociólogo uruguaio Eduardo Gudynas, “em boa parte da América Latina, a apropriação de recursos naturais e a afetação territorial não estão orientadas ao consumo interno de cada país, mas sim a fluxos exportadores globais, fazendo com que acabem servindo às necessidades de consumo de outras nações”[6]. Os extrativismos, nesse contexto, são a expressão mais clara dessa lógica, retiram-se recursos naturais em grande volume e intensidade para exportação, ignorando os impactos locais.
Essa lógica utilitarista, como ressalta Gudynas, tem raízes no antropocentrismo e no patriarcado. Ela naturaliza a dominação do ser humano sobre a natureza, dos homens sobre as mulheres, dos adultos sobre os jovens. A mulher, nesse modelo, é reduzida ao papel de reprodutora e cuidadora do lar, sem o devido reconhecimento social, jurídico e político.
Essa perspectiva de dominação fragmenta a natureza em “recursos”, tornando-a passível de manipulação, controle e exploração. É uma forma de pensamento que remonta ao Renascimento, com autores como Francis Bacon e René Descartes, que viam a natureza e os animais como máquinas a serem desmontadas e utilizadas conforme o interesse humano.
Nosso ordenamento jurídico ainda carrega esses traços, muitas vezes sem questionamento. Se quisermos, de fato, proteger o futuro das cidades do interior, das mulheres e das culturas locais, precisamos romper com esse modelo que naturaliza a violência e a exploração.
[1] “Nesse contexto, a cultura caipira pode ser atualizada de diferentes maneiras, muitas vezes conflitantes. Algumas das representações mais recorrentes materializam-se nas festas de peão de boiadeiro, cavalgadas, comitivas, exposições agropecuárias, rodeios e outras modalidades esportivas de montaria de animais, uso de caminhonetes e na maneira de se vestir, com chapéu, botina, bota e fivela. Aí, o sujeito caipira torna-se sinônimo de cowboy, em um deslocamento simbólico que propõe a superação da visão pejorativa de pobreza e atraso do caipira, para afirmá-lo como gerador de riquezas para o país. Por outro lado, há aqueles que valorizam o vínculo com a natureza, mais próximos da sustentabilidade ambiental do que da ideia do campo vinculado à sua função propriamente econômica, entendendo como verdadeiro caipira aquele camponês que vive em meio a relações socioculturais antagônicas às impostas pelo agronegócio”. Trecho retirado de: GUERRA, L. A.. Os significados de caipira. Tempo Social, v. 34, n. 2, p. 239–256, maio 2022.
[2] Cf. em https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-metamorfose-3/
[3] Para compreender o contexto político e social que envolveu a elaboração do novo Código Florestal, recomenda-se assistir ao documentário A Lei da Água – Novo Código Florestal, que traz entrevistas e análises sobre os interesses e conflitos que marcaram o processo legislativo.
[4] O Código Florestal de 2012 ( Lei Nº 12.651, De 25 De Maio De 2012) foi amplamente criticado por conceder anistia a diversos desmatamentos realizados até 2008. A legislação criou mecanismos como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA), com o objetivo de promover a regularização ambiental das propriedades rurais. No entanto, mais de doze anos após a sua aprovação, apenas três estados implementaram efetivamente o PRA, e o CAR tem apresentado defasagens, sem garantir a efetiva fiscalização das informações autodeclaradas.
[5] Ana Maria de Oliveira Nusdeo; Flavia Trentini; Gabriel Thomazini dos Santos; Leonardo Cunha Silva; Lucas Henrique da Silva. Regulatory barriers for the implementation of brazilian climate policies in the AFOLU sector: Forest Code, ABC Plan, and Renovabio. São Carlos: Pedro & João Editores, 2023. 198p. 16 x 23 cm.
[6] GUDYNAS, Eduardo. Direitos da Natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais. Eduardo Gudynas; tradução Igor Odeja. São Paulo. Elefante, 2019. 340p.