
Na contramão do mundo, o Senado brasileiro aprovou, em 16 de julho, o polêmico Projeto de Lei nº 2.159/2021[1] (Nº Anterior: PL 3729/2004) que institui a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, substituindo regras da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981). A proposta, apelidada de “PL da Devastação” por ambientalistas, pretende agilizar processos para obras e empreendimentos, mas pode abrir brechas perigosas, tanto para o meio ambiente quanto para a saúde pública, sem trazer, de fato, a solução prometida para o setor produtivo.
A nova lei permite, por exemplo, que cada ente federativo regulamente e implemente seus próprios procedimentos de licenciamento (Art. 4º, §1º), desde que respeitados os princípios gerais estabelecidos. Isso soa inócuo, mas, na prática, cria um cenário de insegurança jurídica. Prefeitos(as) e deputados(as), pressionados(as) por interesses imediatistas, poderão reduzir exigências técnicas em troca de investimentos rápidos. O problema é que sem regras claras e nacionais, quem investirá num país onde as normas ambientais mudam de cidade para cidade?
Além disso, o texto dispensa do licenciamento uma série de atividades classificadas como de “impacto ambiental insignificante” ou já reguladas por outros instrumentos (Art. 8º e Art. 9º). Também prevê a possibilidade de licenciamento por adesão e compromisso — um modelo autodeclaratório, baseado no fornecimento de dados pelo empreendedor sem análise técnica prévia, válido inclusive para obras públicas (Art. 17, II, c). Esse modelo parece simples, mas gera um efeito colateral perigoso. A falta de fiscalização e critérios técnicos pode empurrar pequenos e médios empreendedores para conflitos legais, judicializações e dificuldades futuras em financiamentos, especialmente com bancos e fundos internacionais que já exigem compromisso ambiental como condição.
No setor agrícola, a situação é ainda mais preocupante. Produtores de café, por exemplo, já sofrem com chuvas irregulares, secas prolongadas e risco crescente de incêndios e geadas. Ao permitir a simplificação do licenciamento em zonas rurais e áreas produtivas sem considerar a cumulatividade dos impactos ambientais, o que é uma crítica recorrente ao PL, o texto fragiliza ainda mais um setor altamente dependente da estabilidade climática. Em vez de proteger quem produz, a proposta expõe ainda mais os agricultores às incertezas do clima, e também do mercado.
E os mercados internacionais estão atentos. O Cadastro Ambiental Rural (CAR), por exemplo, tem sido uma das ferramentas mais citadas na implementação do novo Regulamento da União Europeia sobre Produtos Livres de Desmatamento (EUDR), ou Regulamento (UE)2023/1115[2], que está suspenso, mas deve entrar em vigor até o final de 2025. A União Europeia passará a exigir rastreabilidade e comprovação de origem livre de desmatamento para produtos como café, soja, carne e madeira, e isso inclui a verificação de dados fornecidos por sistemas como o CAR.
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Mais do que isso: o EUDR estabelece que eventos climáticos extremos ou desastres naturais em áreas produtoras também poderão ser levados em conta na análise de risco da origem da mercadoria. Isso significa que um produtor localizado em uma região ambientalmente vulnerável, poderá ter sua exportação barrada, mesmo que ele próprio não tenha cometido nenhuma infração. A responsabilização passa a ser territorial, e uma localidade pode vir a sofrer com isso.
E os impactos não ficarão apenas dentro de níveis locais. Afrouxar o controle ambiental, além de nos isolar de mercados exigentes, amplia os riscos socioambientais em nível local e nacional. Não há separação entre meio ambiente, saúde pública e economia. Essa é, aliás, uma compreensão essencial que os povos tradicionais nos ensinam há séculos: não somos seres separados da terra, da água, da floresta. Somos parte do todo.
Nesta semana, até mesmo a Confederação Nacional da Agricultura (CNA)[3] se posicionou contra os radicalismos ideológicos que têm contaminado o debate político. Em nota, a entidade afirmou que o Congresso Nacional tem perdido tempo com disputas que pouco têm a ver com os reais interesses econômicos do país. A insatisfação do setor é verdadeira e mostra que há espaço para um diálogo mais equilibrado, técnico e responsável. Falta, ainda, disposição real para cooperar com a ciência, com os dados e com os estudos sérios que apontam caminhos viáveis para o desenvolvimento com proteção ambiental.
O que vemos com o PL 2.159/2021 é o oposto, a tentativa de resolver problemas complexos com soluções fáceis e perigosas. A falta de debate técnico e o atropelo do processo legislativo mostram que o foco não está na proteção do meio ambiente nem no apoio ao empreendedorismo, ao produtor rural e as pessoas em geral, mas na tentativa de responder rapidamente a pressões políticas de curto prazo.
Se sancionada, essa proposta enfraquece a legislação ambiental brasileira, compromete a imagem do país no exterior e transfere riscos e prejuízos à população, que sentirá os efeitos na saúde, no bolso e na vida cotidiana.
O veto presidencial é, neste momento, a decisão mais sensata. Não por ideologia, mas por compromisso com o futuro. Um futuro em que desenvolvimento e cuidado com a casa comum, o ambiente, não sejam vistos como opostos, mas como partes de uma mesma equação. Afinal, não existe economia forte em ambiente doente.
[1] Cf. em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/148785
[2] Cf. em: https://environment.ec.europa.eu/topics/forests/deforestation/regulation-deforestation-free-products_en
[3] Cf. em https://www.cnabrasil.org.br/noticias/nota-a-economia-brasileira-a-margem-de-uma-agenda-politica-sequestrada